Será bom que os brasileiros aproveitem a ida ao cinema, nesses últimos dias do ano de 2024, para cobrarem o esclarecimento do bárbaro assassinato que vitimou o deputado federal Rubens Paiva, durante a ditadura militar. Fui ver o filme em Cuiabá, e meu coração sempre questionador estranhou não encontrar a militância aguerrida, na porta do cinema, gritando palavras de ordem e cobrando punição para os facínoras que mataram Rubens Paiva. Já pensou um protesto desses e uma cobrança dessas diante de todos os cinemas, pelo Brasil afora, que estão exibindo o filme?!
Quem matou Rubens Paiva e ficou impune, parece que matou, também, muito da garra brasileira em defender a vida, a liberdade, o fim da violência policial militar que aparece medonha neste novo filme. Vivemos tempos da frente ampla comandada pelo Lula que parece ser um tempo de impotência diante da barbárie.
A verdade é que somos muito complacentes com os criminosos da ditadura militar aqui no Brasil. Na Argentina, no Chile, no Uruguai, a punição a quem matou e torturou faz parte do cotidiano das pessoas mas, aqui no Brasil, um crime hediondo como o praticado contra a família de Rubens e Eunice Paiva, com seus cinco filhos, continua impune, sangrando em filmes como esse delicado longa dirigido por Walter Salles, sem que a militância aguerrida se mobilize. Viramos baratas, como na Metamorfose, e nos conformamos em ser baratas.
Recordei o impacto que teve, na minha vida, assistir ao filme “Desaparecido Um Grande Mistério”, que o diretor Costa Gravas lançou em 1982, estrelado por Jack Lemmon e Sissy Spacek. “Missing” (titulo original) conta a história de um jovem escritor e jornalista americano assassinado pelos golpistas que derrubaram o presidente Salvador Allende em 11 de Setembro de 1973. Uma história aterrorizante, baseada em fatos reais, que nos faz sofrer a cada minuto do filme. Costas Gravas conta com sensibilidade e talento a história do assassinato de Charles Horman em pleno Estádio Nacional do Chile. Jack Lemmon e Sissy Spacek brilham como pai e esposa de Charles Horman. O filme tem cenas que ficaram nas minhas retinas, como a do cavalo branco correndo pelas ruas de Santiago à noite, como a cena do pai de Charles tentado achar o corpo do filho no Estádio Nacional lotado de vítimas sofridas. Foi lá no Estádio Nacional que também mataram o cantor e compositor Victor Jara.
“Ainda Estou Aqui”, dirigido por Walter Salles (Central do Brasil) e protagonizado por Fernanda Torres (Eunice Paiva) e Selton Mello (Rubens Paiva), felizmente, é um sucesso de crítica e público. O boicote ao filme, defendido pelos bolsonaristas que preferem o torturador Brilhante Ustra ao deputado Rubens Paiva, gorou, as pessoas estão indo ver o filme em número expressivo, registra a mídia. Só que acho pouco.
A nação brasileira é devedora de Rubens e Eunice Paiva e de seus filhos. Depois de brutalmente morto no quartel da Polícia de Exército, entre 20 e 22 de janeiro de 1971, o corpo de Rubens Paiva, segundo os registros históricos, foi a princípio enterrado em lugar ermo do Alto da Boa Vista, próximo à Avenida Edson Passos, mesmo local onde seu carro seria encontrado incendiado, em uma operação levada a cabo por oficiais e sargentos do exército.
Eunice Paiva morreu aos 86 anos em 13 de dezembro de 2018 sem saber onde foi parar o marido. Sem que os responsáveis por sua morte brutal tenham sido responsabilizados. Sem ter sequer o triste consolo de enterrar seus restos mortais. Eunice morreu num vácuo. E num vácuo continuam os familiares do ex-deputado, num vácuo continuamos todos nós que prezamos pela Democracia e lutamos para que horrores de uma ditadura nunca mais se abatam sobre brasileiros e brasileiras.
O filme de Walter Salles cumpre bem o seu papel e mostra como a violência da repressão policial e militar despedaçou com a família de Eunice Paiva, do escritor Marcelo Rubens Paiva que teve o cuidado de registrar em livro essa dolorosa história. Eunice e seus filhos enfrentaram sempre com muita dignidade o inferno de vida para qual acabaram sendo arrastados.
Triste, para mim, é pensar que continua faltando dignidade à sociedade brasileira, incapaz de identificar e punir exemplarmente todos que orquestraram toda essa violência que Walter Salles mais uma vez expõe diante de nós, em nossas caras. Somos mesmo baratas?!
ENOCK CAVALCANTI, 71, é jornalista e editor do blogue PÁGINA DO ENOCK, editado a partir de Cuiabá desde o ano de 2009.
NOTÍCIAS QUENTES – Acesse o grupo do Isso É Notícia no WhatsApp e tenha notícias em tempo real (CLIQUE AQUI)
*Os artigos de opinião são de responsabilidade de seus autores e não representam necessariamente a opinião do Isso É Notícia
“A Constituição foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram” (Ulisses Guimarães, na promulgação da Constituição Cidadã, de 1988)